12 de julho de 2011

Paisagem Noturna


E era melhor assim, que eu não conhecesse o que viria a seguir. Que tudo fosse surpresa, descoberta. Imprevisível. Que o tempo simplesmente resvalasse em nós. Cortando nossas faces. Sussurrando no ouvido frases impronunciáveis. Enquanto mirava aqueles olhos azuis desleixadamente emoldurados entre os cachos vermelhos, eu destrinchava toda a sua miudeza. Aquela compostura forçada de quem finge completamente aquilo que tem de mais verossímil. E seus dedos lá, enrolando os caracóis. Quase num ritual obsessivo. E o tempo parado.
“Você não tocou na sua comida ainda. Vai esfriar.”
Sempre sorrindo de forma misteriosa. Poderia ser alegria, ou tristeza, ou um misto de todos os sentimentos possíveis e impossíveis. Ou simplesmente nada. Não saberia dizer. Que saberia, afinal?
“Nem você.”
Restaurantes são todos iguais, afinal. Um lugar aonde você vai para cumprir formalidades, rituais, tradições. Todos lá são sempre iguais. Ali, uns executivos em reunião de negócios, provavelmente. Lá, um pessoal deslumbrado no happy hour da empresa. E por todos os lados, casais. Casais de todos os tipos. Altos, baixos, louros, morenos, pretos, brancos. Ele vai pedi-la em casamento? Talvez. Ela vai aceitar? Vai, ou não. Aqueles dois vão pisar no preconceito e dar um beijo? Quem sabe. O senhor da outra mesa vai se sentir incomodado com isso? Provavelmente. Mas o futuro de todos é o mesmo. Como se fosse aquilo que chamam de destino. Alguma orientação expressa nos genes. Um padrão de comportamento que uns e outros chamariam de inconsciente coletivo. Não sei ao certo. Mas é tudo muito previsível. E depois? E depois vem o de sempre, aquilo que já conhecemos pelos nossos pais e avós. Só lembranças.
“Acho que devemos brindar por mais um ano. Por todas essas coisas que vivemos juntos!”
Faces coradas. Cachos enrolando. Sorrisos abrindo.
São só recortes, desses que a gente cola nos álbuns de família e guarda no fundo do armário, acumulando poeira. Então, quando chega alguma visita, a gente relembra tudo. Revive tudo. Remói tudo.
Tim tim...
Quando dei por mim estava no carro. Você ia dirigindo, luzes deslizando pelas janelas abertas. Brisa. Neon. Cheiro de álcool. Tudo rodando. E no alto uns vagalumes mortos, pregados no céu escuro. Seus olhos vidrados me ignoravam.
O carro parou em um sinal qualquer. Mini-putas enchiam a esquina. Algumas vestiam mini-saia. Outras, mini-short. Umas calçavam mini-tamancos. Outras, mini-sandálias. Aqui e ali mini-tetas saltavam dos decotes. Tudo mini. Camadas de maquiagem tentavam esconder o medo, a solidão. Tristeza mascarada em sorriso. A infância roubada que escorria por entre as sarjetas. O rubor adolescente soterrado sob camadas e mais camadas de corretivo facial e por meia dúzia de moedas. Dez reais, quinze. Vamos lá! Dê um preço! Aceitamos negociação. Virgem é trinta. Todas elas rodeando o carro. Parecendo zumbis.
Meu estômago revirava. E seu cabelo tudo enrolava. Seus dedos lá, retorcendo os fios. Ritual. Enquanto aqueles pequenos olhos vinham em minha direção, eu procurava algo para me segurar. Tudo girava. E as putas todas gemiam.
“Deviam era brincar de bonecas...”
Bonecas. Marionetes. Sem desejos, só vontades. Sonhos que escorrem junto ao sangue. É o que sobra do estupro. Violência consentida por todos. Fecho os olhos. Gritos. Eu grito. Não quero ver. Mas observo tudo de ouvidos atentos. Ali, no meio de algum beco ou corredor imundo, uma vida fora violada.
Sinal verde. Pingos de chuva no para-brisa. Som de pneu cantando no asfalto. Borrões amarelos cortando a paisagem. Mendigos no meio fio. Drogados entre a sujeira. Tudo embaçando. Tudo girando. Seus cachos rodando. Meu estômago subindo. Nós dois enrolando. Tudo excitando. Tudo gritando. Tudo enrolando. Tudo.
Quando dei por mim já era dia. E era melhor assim.

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