6 de junho de 2011

10 Contados

Queria não ter raiva de ti. De olhar para teus cachos vermelhos encaracolando por aí e não sentir asco. Mas não posso, é muito forte. Olho para tua cara, vejo tua face alva corada de pequenas pintas e logo o sentimento vem. Ele surge assim, do nada. Começa pequenininho e vai crescendo, tomando forma e cor, ficando grande e forte. E vai destruindo, devastando e arruinando. Feito tempestade. Dessas de gelo e vento, com muitos trovões, que assustam as criancinhas. Fecho os olhos e conto. Conto até dez, que é para não te assustar.

Um...
Tu disseste certa vez que não era mais como antigamente, que não me olhavas mais do mesmo jeito. Descobri que tu foste embora porque não aguentavas mais me olhar. Vergonha. Nada de olhos nos olhos. Nem ao menos isso...

Dois...
Revivi páginas perdidas. Casos obscuros. Cenas cortadas. Reacendi as luzes que apagaste e eu insistia em acender. Vamos! Vem e tenta jogar sobre nós um véu de escuridão novamente. Não destruas teu castelo de cartas que eu tão amigavelmente ajudei a montar.

Três...
Fui rasgando cada coringa, cada ás de copas e três de espadas da tua base. Implodi tuas paredes e fiz de ti apenas escombros. Era justo, não seria diferente. Fizeste o mesmo de mim.

Quatro...
Vem e vê o que faço dos teus tijolos. Guardo lembranças, acorrento ímpetos. Depois jogo tudo fora. Não era o que querias? Vou montando minha fortaleza e coloco sentinelas aqui e acolá. Aqui, tu não entrarás!

Cinco...
De mala na mão e coração no chão, tu chegaste. Teus cachos serpenteando petulantes nos ombros. Olhos nos olhos, como nunca antes. Lábios nos lábios, para nunca mais. Toco tua face e me dás aquilo que eu queria. E entre teus desatinos mais alucinados jogo ao chão minhas sentinelas. Empunho minhas armas feitas de humilhação e ódio. Abro o portão. É tudo teu. Sou todo teu.

Seis...
Colonizaste minhas ilhas e rochedos mais recônditos. Hasteaste a bandeira de teu templo e catequizaste minha mente. Trouxeste guerra e morte. E enquanto o dia morria no oeste eu caminhava a teu lado, cegamente entorpecido pelo perfume dos amores passados.

Sete...
E dos teus ecos retumbam flores. As flores que um dia eu dei. E teus olhos refletem amores. Amores que nunca terei. E das tuas verdades, sempre capengas, afloram pupilas opacas. Mentiras.

Oito...

E, ao entardecer, vou saber que tuas lágrimas foram só encenação e tuas palavras foram teu palco. Num teatro sem ensaio. Nem protagonistas. Pega tua mala, acende teu coração. Não voltes aqui! Não mais.

Nove...
E enquanto via teus vermelhos cachos enrolando-se no horizonte, o sentimento veio. Veio grande e terrível. Tsunami. E arrasou tudo o que viu. Levando árvores, arrancando raízes, deixando tudo escarlate.

Dez...
Nem teus gritos emudecidos pelo tempo me farão abrandar. Nem teus pedidos mais desesperados me farão sumir. Mas, enfim, acabou. Deixarei teus cachos enroladinhos embaixo da cama e, quando me procurarem, diz que fui por aí, para nunca mais.


Baseado na notícia “Marido mata mulher e coloca corpo debaixo da cama em Ribeirão das Neves”. Disponível em

2 comentários:

  1. Sem dúvida alguma o melhor texto que li por aqui, para não dizer um dos mais belos que li nesses últimos tempos.

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