17 de setembro de 2010

Despedida


Acordou com o toque do celular. Recebera uma mensagem: era dela. Iria viajar à tarde e queria que ele levasse seus pertences que ainda se encontravam no apartamento. Eram algumas peças de roupa, dvd’s esquecidos e livros. Talvez algo mais, mas não se lembrava. Tudo estava no lugar em que ela deixara.
Depois do café da manhã e da leitura do jornal, voltou para o quarto. Ficou relendo a mensagem que ela enviara. Seu dedo corria pelo cursor, seus olhos se moviam rapidamente pela tela do celular. Então era assim que acabava, pensou. Tantos momentos bons jogados fora.
Repassou mentalmente a discussão da semana anterior e o conseqüente rompimento da relação de dois anos. Fora sua culpa, admitia. Mas o que não admitia é que ela deixasse algo tão bobo atrapalhar sua felicidade. Um mal entendido.
Olhou para o relógio sobre o criado mudo. Onze da manhã. Tinha que se arrumar. Ela partiria dentro de poucas horas. Não conseguia reunir forças para se levantar da cama. Lá fora, o céu escurecia e pingos de chuva começavam a pipocar nas janelas.
Tomando coragem, rumou para o banheiro. Abriu o chuveiro e deixou que a água quente escorresse pelo seu corpo nu. Pela porta aberta entrava uma suave brisa. A água quente escorria pelo ralo. Ele mesmo sentia-se escorrendo. Talvez se tivesse feito diferente, se tivesse agido corretamente, não houvesse despedida. O ruído da água caindo no chão entrava anormalmente alto pelos seus ouvidos. Fechou o registro. Mirou o espelho embaçado e sua imagem distorcida, refletida. Com as mãos enxugou o espelho, mas sua imagem continuou embaçada.
Foi preparar um almoço rápido. A comida descia seca e pesada pela garganta. O suco era amargo. A sala, demasiada escura pela pouca luz dos dias chuvosos, estava mais escura e fria. Olhou para os restos do alimento no prato. Permaneceu olhando-os por alguns minutos. Quando retornou à realidade viu que já era tarde. Arrumou-se depressa e juntou os pertences dela.
Saiu e trancou a porta. Esperou o elevador e apertou o botão do térreo. Permaneceu imóvel e sozinho no elevador pelo que lhe pareceu horas. Quando saiu, abriu o guarda-chuva e tomou seu rumo rotineiro. Pelas calçadas, pedestres disputavam os últimos lugares protegidos da chuva. Todos indiferentes a ele e a seu problema, como sempre. Todos preocupados com os seus próprios problemas.
Chegou à avenida principal. Olhou para o sinal de pedestres e parou, esperando que ficasse verde. Olhou para os carros que passavam velozmente pelo asfalto e para os rastros que deixavam na água acumulada. Ele era um rastro. Apenas um rastro na vida dela.
Um ônibus passou, lotado, as janelas fechadas e embaçadas. Quais os problemas que afligiam aquelas pessoas? O que se passava em suas cabeças durante a viagem? Sempre quisera saber. Mas agora, só lhe interessava uma única pessoa.
O sinal mudou e ele se juntou à multidão que tentava atravessar a avenida. Estava perto do seu destino. Quando chegou, encontrou-a parada na calçada, esperando táxi. Não usava guarda-chuva. Seus cabelos estavam ensopados.
- Até que enfim, - Ela olhou-o com desprezo e ele sentiu o remorso corroendo-o por dentro. – Pensei que nunca chegaria. Bem, obrigada por trazer tudo. Foi muito gentil.
- De nada. – As palavras saíam artificiais. Não conseguia parar de olhá-la nos olhos. – Eu só queria... eu só queria dizer que...
 - Veja! Meu táxi chegou. – Ela pegou suas coisas, andou para a rua e acenou para um táxi que vinha em frente. Antes de entrar ainda olhou para ele. – Muito obrigada. Cuide-se.
Não podia deixar que ela entrasse sem antes lhe dizer o que sentia. Antes de dizer que sentia muito por tudo. – Espere! – Ela parou no meio do caminho para entrar no táxi e olhou-o com carinho. – Eu só quero dizer que...
Ela só o olhava daquela forma tão meiga quando estavam juntos. Veio à sua mente lembranças dos momentos passados. Do primeiro encontro, quando se beijaram pela primeira vez. Das primeiras brigas. Das primeiras separações. Revendo o passado, suas atitudes lhe pareciam tão idiotas e infantis...
- Eu... só quero... só quero lhe dizer... er... boa viagem...
Ela o olhou uma última vez antes de entrar no táxi e fechar a porta. Ele permaneceu parado, acompanhando o táxi pela avenida. Ainda tinha esperança de que o táxi freasse e ela descesse, corresse pela a avenida e dissesse o quanto o amava. Pura tolice. O táxi não parou, ela não desceu. Apenas continuou seu caminho até o semáforo em frente. Quando parou ele torceu para que ela olhasse para trás uma única vez, só uma. Mas não se virou. Continuou olhando para frente, seus longos cabelos molhados sorrindo para ele pelo vidro traseiro embaçado.
O táxi acelerou quando o sinal ficou verde e virou numa curva para a direita. Ele ficou parado na calçada, a chuva escorrendo pelo seu rosto. Não a veria mais. Era a despedida.

8 de setembro de 2010

O Espetáculo Perdido

Hoje o céu está tão lindo
Porém as ruas estão vazias.
Onde estarão todos?
O Espetáculo está perdendo-se.

O rio azul corre livre.
Cor vibrante no cinza pálido.
Onde estarão todos?
O rio metálico corre contra o azul.

A rosa desperta sonolenta.
Rompe as barreiras do concreto armado.
Onde estarão todos?
Em hipnose ante a caixa florescente.

Hoje o céu está tão lindo.
Porém tudo está vazio.
Onde estarão todos?
O Espetáculo está perdido.

Sem Título [III]

Sem me aperceber
Vida nova despontou no leste.
A divina flro transformada em fruto.
O beija-flor no ar suspenso.

Sem me aperceber a chuva cai
E leva consigo o que já foi.
As crianças correm.
Vão sementes,
Voltam flores.

Sem me aperceber a noite cai.
A Lua no alto.
Os amantes eternos separam-se.
As luzes se apagam.

Sem me aperceber...
Não nasci.
E acabei morrendo.

2 de setembro de 2010

A Carta

Ronaldo acabara de voltar do horário de lanche. Era vigilante de um supermercado de Belém. Fazia sete meses que fora contratado. O emprego veio em boa hora. O orçamento da família aumentou agora que sua filha começou a estudar. O salário não era dos mais altos, mas o emprego era honesto.

Todos os dias ele saía de casaa no começo da tarde e pegava dois ônibus até o serviço. Quando voltava de madrugada, eram três ônibus, pois uma das linhas não passava tão tarde. Era uma rotina cansativa. Mas valia a pena. Já era conhecido dos outros funcionários e respeitado pelos superiores.

Hoje era um dia especial. Sua filha completava oito anos. Ronaldo já planejava uma pequena surpresa para ela quando chegasse em casa. Compraria um pequeno bolo e um refrigerante para comemorar. Entraria devagar em seu quarto e a acordaria. Enquanto voltava para o seu setor, apertava nas mãos uma carta que sua filha lhe escrevera no dia anterior dizendo o quanto o amava.

Perto dos caixas uma movimentação lhe chamou a atenção. Chegou mais perto para verificar, a carta segura em mãos. Era um assalto. Seus olhos se encontraram com os de um dos meliantes. Ronaldo vislumbrou um revólver sendo apontado em sua direção. Depois, nada. Só um ruído seco. Não sentiu dor. Apenas caiu para trás. Tinha em sua mão a carta, agora tingida de vermelho.