13 de setembro de 2011

Sem Título [V]

Com o guarda-chuva na mão, subi a rua da Bahia com passos lentos, respirando cuidadosamente o ar úmido de outubro. Esbarrando em vultos molhados, entrei no Maleta e fui para o bar de sempre, na sobreloja. Sentei de frente para a rua e, entre um gole e outro de cerveja, observava o nada com os olhos vazios e os ouvidos atentos. Era a mesma mesa em que o Zé, meses atrás, sentara comigo e, com olhos profundos, murmurou aquele que eu ainda considero o melhor conselho do mundo:

“Deixa doer com força... Vai machucar? Vai. Vai doer até você não aguentar? E como vai... Vai sangrar? Muito. Mas é melhor assim. Quanto mais a gente deixa a dor doer, mais rápido ela gasta.”

23 de julho de 2011

Reminiscências de um ser que chove

Chega! Meu copo transbordou! E foi só a primeira gota. Apenas uma gota. Mesmo assim eu inundei. Virei enxurrada. Uma correnteza. Levando tudo. Destruindo e matando. Uma enchente, maremoto, tsunami. Arrancando árvores, raízes, tudo. Ressaca. Mas uma hora eu seco. E viro nuvem. E vou por aí, gasoso, chovendo em alguma horta morta, algum pomar ressequido de ódio. Gotejando num fluxo contínuo. Tempestade. Dessas cheias de vento e granizo e raios e trovões. Tufão! Que dão medo em todos. Que atormentam crianças. Ai de mim! Mas a nuvem também some, desaparece do céu. Vira poça. Dessas, pequenininhas, em que todos pisam. Um misto de água e barro. Sujeira. Lixo. Esgoto. Ai de mim! Triste sina de quem sonha em ser mar. Mas não nasceu nem para ser lagoa.

12 de julho de 2011

Paisagem Noturna


E era melhor assim, que eu não conhecesse o que viria a seguir. Que tudo fosse surpresa, descoberta. Imprevisível. Que o tempo simplesmente resvalasse em nós. Cortando nossas faces. Sussurrando no ouvido frases impronunciáveis. Enquanto mirava aqueles olhos azuis desleixadamente emoldurados entre os cachos vermelhos, eu destrinchava toda a sua miudeza. Aquela compostura forçada de quem finge completamente aquilo que tem de mais verossímil. E seus dedos lá, enrolando os caracóis. Quase num ritual obsessivo. E o tempo parado.
“Você não tocou na sua comida ainda. Vai esfriar.”
Sempre sorrindo de forma misteriosa. Poderia ser alegria, ou tristeza, ou um misto de todos os sentimentos possíveis e impossíveis. Ou simplesmente nada. Não saberia dizer. Que saberia, afinal?
“Nem você.”
Restaurantes são todos iguais, afinal. Um lugar aonde você vai para cumprir formalidades, rituais, tradições. Todos lá são sempre iguais. Ali, uns executivos em reunião de negócios, provavelmente. Lá, um pessoal deslumbrado no happy hour da empresa. E por todos os lados, casais. Casais de todos os tipos. Altos, baixos, louros, morenos, pretos, brancos. Ele vai pedi-la em casamento? Talvez. Ela vai aceitar? Vai, ou não. Aqueles dois vão pisar no preconceito e dar um beijo? Quem sabe. O senhor da outra mesa vai se sentir incomodado com isso? Provavelmente. Mas o futuro de todos é o mesmo. Como se fosse aquilo que chamam de destino. Alguma orientação expressa nos genes. Um padrão de comportamento que uns e outros chamariam de inconsciente coletivo. Não sei ao certo. Mas é tudo muito previsível. E depois? E depois vem o de sempre, aquilo que já conhecemos pelos nossos pais e avós. Só lembranças.
“Acho que devemos brindar por mais um ano. Por todas essas coisas que vivemos juntos!”
Faces coradas. Cachos enrolando. Sorrisos abrindo.
São só recortes, desses que a gente cola nos álbuns de família e guarda no fundo do armário, acumulando poeira. Então, quando chega alguma visita, a gente relembra tudo. Revive tudo. Remói tudo.
Tim tim...
Quando dei por mim estava no carro. Você ia dirigindo, luzes deslizando pelas janelas abertas. Brisa. Neon. Cheiro de álcool. Tudo rodando. E no alto uns vagalumes mortos, pregados no céu escuro. Seus olhos vidrados me ignoravam.
O carro parou em um sinal qualquer. Mini-putas enchiam a esquina. Algumas vestiam mini-saia. Outras, mini-short. Umas calçavam mini-tamancos. Outras, mini-sandálias. Aqui e ali mini-tetas saltavam dos decotes. Tudo mini. Camadas de maquiagem tentavam esconder o medo, a solidão. Tristeza mascarada em sorriso. A infância roubada que escorria por entre as sarjetas. O rubor adolescente soterrado sob camadas e mais camadas de corretivo facial e por meia dúzia de moedas. Dez reais, quinze. Vamos lá! Dê um preço! Aceitamos negociação. Virgem é trinta. Todas elas rodeando o carro. Parecendo zumbis.
Meu estômago revirava. E seu cabelo tudo enrolava. Seus dedos lá, retorcendo os fios. Ritual. Enquanto aqueles pequenos olhos vinham em minha direção, eu procurava algo para me segurar. Tudo girava. E as putas todas gemiam.
“Deviam era brincar de bonecas...”
Bonecas. Marionetes. Sem desejos, só vontades. Sonhos que escorrem junto ao sangue. É o que sobra do estupro. Violência consentida por todos. Fecho os olhos. Gritos. Eu grito. Não quero ver. Mas observo tudo de ouvidos atentos. Ali, no meio de algum beco ou corredor imundo, uma vida fora violada.
Sinal verde. Pingos de chuva no para-brisa. Som de pneu cantando no asfalto. Borrões amarelos cortando a paisagem. Mendigos no meio fio. Drogados entre a sujeira. Tudo embaçando. Tudo girando. Seus cachos rodando. Meu estômago subindo. Nós dois enrolando. Tudo excitando. Tudo gritando. Tudo enrolando. Tudo.
Quando dei por mim já era dia. E era melhor assim.

6 de junho de 2011

10 Contados

Queria não ter raiva de ti. De olhar para teus cachos vermelhos encaracolando por aí e não sentir asco. Mas não posso, é muito forte. Olho para tua cara, vejo tua face alva corada de pequenas pintas e logo o sentimento vem. Ele surge assim, do nada. Começa pequenininho e vai crescendo, tomando forma e cor, ficando grande e forte. E vai destruindo, devastando e arruinando. Feito tempestade. Dessas de gelo e vento, com muitos trovões, que assustam as criancinhas. Fecho os olhos e conto. Conto até dez, que é para não te assustar.

Um...
Tu disseste certa vez que não era mais como antigamente, que não me olhavas mais do mesmo jeito. Descobri que tu foste embora porque não aguentavas mais me olhar. Vergonha. Nada de olhos nos olhos. Nem ao menos isso...

Dois...
Revivi páginas perdidas. Casos obscuros. Cenas cortadas. Reacendi as luzes que apagaste e eu insistia em acender. Vamos! Vem e tenta jogar sobre nós um véu de escuridão novamente. Não destruas teu castelo de cartas que eu tão amigavelmente ajudei a montar.

Três...
Fui rasgando cada coringa, cada ás de copas e três de espadas da tua base. Implodi tuas paredes e fiz de ti apenas escombros. Era justo, não seria diferente. Fizeste o mesmo de mim.

Quatro...
Vem e vê o que faço dos teus tijolos. Guardo lembranças, acorrento ímpetos. Depois jogo tudo fora. Não era o que querias? Vou montando minha fortaleza e coloco sentinelas aqui e acolá. Aqui, tu não entrarás!

Cinco...
De mala na mão e coração no chão, tu chegaste. Teus cachos serpenteando petulantes nos ombros. Olhos nos olhos, como nunca antes. Lábios nos lábios, para nunca mais. Toco tua face e me dás aquilo que eu queria. E entre teus desatinos mais alucinados jogo ao chão minhas sentinelas. Empunho minhas armas feitas de humilhação e ódio. Abro o portão. É tudo teu. Sou todo teu.

Seis...
Colonizaste minhas ilhas e rochedos mais recônditos. Hasteaste a bandeira de teu templo e catequizaste minha mente. Trouxeste guerra e morte. E enquanto o dia morria no oeste eu caminhava a teu lado, cegamente entorpecido pelo perfume dos amores passados.

Sete...
E dos teus ecos retumbam flores. As flores que um dia eu dei. E teus olhos refletem amores. Amores que nunca terei. E das tuas verdades, sempre capengas, afloram pupilas opacas. Mentiras.

Oito...

E, ao entardecer, vou saber que tuas lágrimas foram só encenação e tuas palavras foram teu palco. Num teatro sem ensaio. Nem protagonistas. Pega tua mala, acende teu coração. Não voltes aqui! Não mais.

Nove...
E enquanto via teus vermelhos cachos enrolando-se no horizonte, o sentimento veio. Veio grande e terrível. Tsunami. E arrasou tudo o que viu. Levando árvores, arrancando raízes, deixando tudo escarlate.

Dez...
Nem teus gritos emudecidos pelo tempo me farão abrandar. Nem teus pedidos mais desesperados me farão sumir. Mas, enfim, acabou. Deixarei teus cachos enroladinhos embaixo da cama e, quando me procurarem, diz que fui por aí, para nunca mais.


Baseado na notícia “Marido mata mulher e coloca corpo debaixo da cama em Ribeirão das Neves”. Disponível em

14 de abril de 2011

Microconto em 140 caracteres #3

Júlia não gostava de sua aparência. Reduziu o nariz, aumentou os seios, pôs botox nos lábios. A filha nasceu e todos dizem: É a cara do pai!